sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

:: Lycanthia ::


:: Lycanthia ::

"Eles haviam concordado em exterminá-los, mas ela não achava certo. Como poderiam fazer algo assim com aquelas pobres crianças? Mas as crianças estavam se voltando contra Gaia e eles tinha que ser punidos"

Liandra colocou a última caixa ao lado da porta e passou o braço pela testa suada, respirando fundo e deixando seus olhos correrem pela sala que agora estava vazia.

Aquela fora sua casa durante toda sua vida, mas agora era hora de deixá-la e embora fosse doloroso, Liandra sentia que aquilo era o melhor a fazer, por muitos motivos, mas o principal dele era exatamente a floresta.

A misteriosa floresta de Elvengod abrigava algumas poucas casas de famílias de guardas florestais e a região agora era desapropriada para a expansão de uma represa. Era o progresso, como seu querido noivo dizia e nada se podia fazer contra.

Nada? Liandra sabia que era possível fazer algo contra, ela sentia aquilo toda a noite, mais e mais e por isso é que a decisão de sair antes de qualquer outro havia surgido como uma válvula de escape.

Todos se surpreenderam com aquele anúncio, a filha do guarda florestal mais querido estava indo embora. Era claro que alguns comentários surgiram, todos diziam que sabiam que assim que o pai dela morresse ela viraria às costas para aquele lugar. O que ninguém entendia era que ela amava aquele lugar acima de tudo e amava aquelas pessoas e era exatamente por isso que estava deixando-os.

A última noite naquela cabana, ela tinha que resistir apenas aquela noite e tudo estaria acabado. Quanto mais longe estivesse, mais distante o chamado estaria e ele não a alcançaria, ao menos era isso que ela imaginava.

Um uivo cortou o silêncio que pairava dentro da casa vazia e Liandra deixou-se sentar em uma das caixas, fechando os olhos e respirando fundo, fechando o maxilar com força em seguida. ela tentava ignorar aquele chamado aos seus instintos, tentava concentrar sua atenção no vento, em todos os outros sons da floresta, mas todos eles pareciam fazer questão de se calarem.

Ela sabia que era questão de tempo e logo a dama infernal que habitava em seu sangue tomaria sua razão, exatamente como fizera com seus irmãos que agora estavam rondando a cabana.

Mais um uivo cortou o vento e Liandra sentiu os pêlos de seus braços e de sua nuca.

Ela olhou pela janela da cabana de madeira, divisava claramente cada um dos vultos que se moviam entre as árvores. Estavam esperando ela, ela teria que seguir com eles e não havia nada que pudesse fazer. As crianças seriam mortas naquela noite como um aviso.

O terceiro uivo ecoou e dessa vez o corpo de Liandra estremeceu. Aquilo era demais, negar seus instintos daquela maneira era algo quase doloroso a ser feito, mas se ela não refreasse aquelas sensações estaria se voltando contra tudo que sempre acreditara.

"Papai..." - ela pensou, sentindo lágrimas frias escorrerem por sua pele febril - "Me desculpe papai..."- ela fechou as mãos em punho. Por quanto tempo vinha negando sua natureza, por quantos anos se escondera em meio aos humanos?

Com um soluço ela caiu de joelhos no chão, seu corpo curvado, inclinado para frente, sua pele ardia enquanto parecia se partir, pequena demais apura revestir algo tão grandioso, algo tão... inumano.

Sem escolhas, dessa vez ela cedia ao chamado sem sequer poder evitar. Um estrondo ecoou dentro da cabana e aporta da frente fora arremessada para o jardim em milhares de estilhaço, um enorme vulto negro passando por ela, correndo em direção à mata que começava a alguns metros adiante.

Aquela não era mais Liandra, a filha adotiva amorosa e cheia de consideração pelo próximo, pela floresta que a cercava. Seus olhos vermelhos encaravam a noite, tingindo todo seu mundo com aquela mesma cor.

O instinto assassino a fazia vagar pelas árvores, passando pelas clareiras e pelos casebres das demais famílias.

Sua alma tinha desejo por sangue, mas a cada nova casa que visitava percebi que havia atendido tardiamente ao chamado da morte. Não, ela não queria devorá-los, ela queria salvá-los.

"Tarde demais..." - como milhares de vozes em sua mente, enquanto a madrugada avançava e ela continuava pela floresta, andando, tentando descobrir qual seria o próximo alvo da matilha. Nada, a presença de todos aqueles que ela conheciam e a recriminavam por sua decisão de ser a primeira a partir, todas aquelas pessoas foram as que partiram primeiro.

Havia uma última casa, uma última casa dentro da floresta, Liandra ainda tinha a esperança de salvá-los e por isso empreendia todo o esforço e utilizava suas últimas energias para alcançar a residência da família Duarte.

O sol estava quase nascendo quando ela finalmente alcançou a residência, encontrando a porta entreaberta, uma vez mais Liandra chegara tarde, seus irmãos haviam feito todo o trabalho e não havia nada que ela pudesse fazer para impedir aquilo, não que ela pudesse fazer grande coisa no estado em que estava, mas ela queria que seu sacrifício não fosse em vão.

Liandra subiu os pequenos degraus que haviam na varanda e passou pela porta entreaberta, o cheiro de sangue invadiu seu nariz imediatamente enquanto seus olhos se deparavam com as cenas de morte. Não havia sobrado muito do casal, não havia sobrado nada que pudesse identificá-los como humanos.

Liandra saiu da casa sentindo a dor cortar seu peito ao meio, não só a dor física, mas todo o sofrimento. Se ela houvesse atendido ao chamado de Gaia eles teriam poupado aqueles humanos? Se ela pudesse explicar que não fora uma escolha deles, eles entenderiam?

Mais alguns passos e seu corpo caiu para frente, tombando em meio ao jardim ordem alguns dos materiais da construção e até um pequeno trator estava. As obras para a construção da represa começariam em breve e era aquela a razão do chamado.

Os filhos de Gaia queriam deixar claro que a destruição daquela parte de Elvengod que os abrigava traria um grande peso para a humanidade e aquelas morte eram apenas um pequeno lembrete.

Parada no centro do jardim, Liandra ergueu sua cabeça, mirando seu focinho em direção à lua, deixando o uivo dolorido escapar de seu peito.

As patas da frente se dobraram e o corpo de Liandra caiu de lado, aos poucos uma mancha de sangue formou-se sob a imensa loba negra, no exato momento em que o sol substituía a lua no céu.

O brilho de uma adaga de prata surgia em meio aos pêlos, deixando claro porque a loba sofrera tanto para acompanhar o bando, para barrá-los.

Ciente que seus instintos poderiam mais uma vez falarem mais alto, antes que seu corpo se transformasse numa besta sedenta por morte ela havia fincado uma adaga de prata em seu peito. Sabia que aquilo causaria sua morte, mas ao mesmo tempo impediria a besta de tomar sua sanidade.

Fora uma decisão difícil e teve que ser tomada em poucos segundos, antes que aqueles lobos invadissem sua residência. Ela apanhou o punhal de prata que fora de seu pai e o cravara em seu próprio peito, seu corpo como reação a transformara em lobo e ela precisou fugir até que seus instintos assassinos amainassem e ela voltasse a raciocinar. Um pouco tarde, todo seu esforço fora em vão.

Seus olhos se fecharam com os primeiros raios de sol, uma última imagem turva deixara a impressão de ter visto alguém se aproximando, uma garotinha usando uma camisolinha branca manchada de sangue.

- Liandra... - a voz de menininha parecia hesitante, enquanto ela estendia a mão para tocar o corpo nu e ferido da jovem.

- Amara... - os lábios de Liandra delinearam o nome mas não emitiu nenhum som. A filha dos Duarte, da família dos engenheiros responsáveis pela construção da represa estava ali diante dela, a única testemunha de seu último suspiro.

Liandra fechou os olhos e seu corpo pareceu murchar, os ares de sua existência escapando por sua boca e batendo contra o rosto da menina.

Naquela mesma noite no topo da colina um grupo de lobos recebia uma criatura pequenina, quase semelhante a uma raposa em meio a eles.

Vestígios do tecido branco caindo pelo corpo do pequeno lobo marrom, ignorante de sua própria natureza, após ter negado por tantos anos seus instintos, Liandra passara sua maldição adiante, perpetuando o ciclo sem fim de sua existência dentro de um corpo frágil e humano, mas dessa vez ela não cometeria os mesmos erros. Era hora de ouvir o chamado de Gaia.

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