domingo, 29 de janeiro de 2012

Conto para o concurso da editora Literata

A culpada: Rosalie.

Meu nome é Rosalie Drumont, filha de comerciantes londrinos ambiciosos, única herdeira de Philip e Isadora Drumont, o maior orgulho de meus pais.

Era 10 de junho de 1907 quando duas histórias distintas, mas com o mesmo destino, nasceram e foram servidas com os mais belos pratos, preparados por mãos que eu jamais conheceria, visto que eles não tinham permissão de sair da cozinha.

O senhor Morgan e o senhor Ismay planejavam construir os três maiores navios do mundo e assim concorrer a rota do Atlântico com a Cunard Line. A guerra fria entre os homens por dinheiro e poder seria eterna?

Meus olhos estavam presos em Robert Thompson enquanto num canto reservado da sala, após o jantar, papai e ele conversavam sobre os negócios e sobre mim. Ele era bem mais velho do que eu., mas isso não importava.

Mesmo sentindo que meu casamento nada seria além de um acordo comercial, meus sonhos sobre entrar na igreja com o belo vestido branco que mamãe usara e com todos os convidados à minha espera falava alto demais.

Na manhã de 31 de março de 1909 chegou a carta tão esperada por mamãe e papai e posteriormente naquela noite um jantar fora organizado em minha casa, para receber meu noivo.

Eu não sabia, mas naquela mesma manhã fora iniciada a construção do Titanic.

Robert estava na Inglaterra para fechar negócios, mas voltaria para a América em algumas semanas.

Ele me contou que fazia parte de uma empresa chamada International Mercantil Marine e me explicou mais sobre os planos do navio que cruzaria o Atlântico.

Suas palavras tinham um tom apaixonado que fizeram com que meu coração pela primeira vez batesse mais forte por aquele jovem senhor de aparência comum. O brilho em seus olhos fez com que os meus brilhassem do mesmo modo intenso e pela primeira vez em sua presença eu não precisei imitar gestos ensinados por mamãe.

O orgulho nascido à cerca de um ano e meio atrás agora começava a caminhar e encher meu peito e eu tinha um sorriso genuíno quando ele colocou o anel de diamante em meu dedo.

Ele beijou o anel e me olhou nos olhos, ainda carregando aquele brilho e me disse que eu estaria na viagem inaugural, contaria a todos quando chegasse ao outro continente sobre o maravilhoso navio que meu futuro marido ajudara a construir.

Sim meus caros, apesar da ideia ter nascido em Londres, o projeto final foi financiado por dinheiro estadunidense, uma soma astronômica de dez milhões de dólares.

Era 25 de Julho de 1910 meu pai insistiu que eu o acompanhasse até o estaleiro de Harland & Wolf, disse que seria bom que colocasse meus olhos sobre o navio em construção.

“O olhar do dono engorda o gado minha cara Rose” – ele me dizia enquanto caminhávamos por entre os mais de mil e quinhentos operários, de braços dados, como dois turistas num parque florido.

Não estava lá porque realmente queria “engordar meu gado”, mas estava lá porque Robert partira há um ano e suas cartas com as palavras doces se pareciam tanto com os livros de e ter algo concreto dele, de seu coração, me faria sentir como se estivesse ao seu lado novamente.

- Os homens sempre tentarão se igualar a Deus, mas apenas Deus pode decidir quando isso será possível. Nunca pensei que aço pudesse significar ambição e decepção – eu me virei um tanto exasperada com aquelas palavras, vendo uma jovem atrás de mim. Se ela não acreditava naquele sonho o que estava fazendo ali?

Seu corpo era magro e suas roupas de alfaiataria barata, seu rosto era encovado e sua pele não trazia o viço de uma moça de sua idade. Conheci a inveja naquele momento.

- Vejo de outro modo – repliquei com um sorriso nos lábios, de alguém que realmente se orgulhava daquelas peças de aço ainda sendo encaixadas no casco – Vejo como a paixão de homens que com certeza estão deixando seu criador orgulhoso – aquilo de certa forma lembrou-me uma discussão religiosa e sim, estávamos falando de crenças, mas era um tipo diferente de crença, como pude perceber mais tarde.

Ela me olhou por alguns segundos e então assentiu com a cabeça. Teria concordado comigo?

- Foi um prazer conhece-la senhorita Drumont, certamente encontrara a felicidade do outro lado – ela fez uma breve reverência e se retirou, deixando-me em dúvida sobre suas palavras.

Era 31 de março de 1911, por volta do meio dia. Havíamos preparado um grande almoço para a ocasião, para quando retornássemos do porto.

Robert estava ao meu lado, segurando minha mão e em meu peito um sentimento tão grandioso quanto à expectativa de todos ali fazia meu coração inflar, meu rosto ruborizar enquanto eu apertava e entrelaçava meus dedos aos de Robert.

- O mundo será nosso – ele sussurrou em meu ouvido e então pela primeira vez Titanic foi lançado à água.

Soltei a mão de Robert e bati palmas, ainda olhando em volta, vendo então Bruce Ismay parar ao lado de meu pai e lhe dar tapinhas nos ombros.

Ergui a mão para lhe acenar, mas meu gesto foi interrompido.

Ao lado dele uma jovem parecia se destacar em seu vestido claro, seu rosto tinha o brilho da vida e seus olhos estavam fixos em mim. Ela sorria, mas eu não conseguia retribuir seu sorriso.

Era ela, eu tinha certeza que era a mesma jovem que eu vira no estaleiro. Ela se adiantou e cumprimentou papai e mamãe, mas pareceu ignorar ao senhor Ismay, vindo então em minha direção.

-Senhorita Drumont – ela fez a mesma breve reverência e dessa vez me forcei a sorrir e retribuir seu gesto, mas Robert permaneceu ao meu lado, como uma estátua, sua expressão parecia vazia e indiferente.

- A quem está cumprimentando Rosalie? – ele me perguntou e eu o encarei boquiaberta, com ar de descrença. Ele não estava vendo-a?

Olhei para o lado, uma senhora gorda com um casaco de pele se exprimia, tentando ficar o mais próximo possível de Ismay.

- Senhor Ismay, senhor Ismay! – ela chamava, mas Bruce Ismay lhe ignorava completamente. Quem seria? Ela parecia ser alguém da alta sociedade.

- Ela vai perdoá-lo quando ela deixa-la morrer – atrás de mim, a desconhecida jovem surgiu e eu a ignorei. Quem era ela afinal? Por que sumia e aparecia? – Mas eu não perdoaria – ela me disse, tocando novamente em meu ombro.

- Quem é você? – me virei de repente, me deparando com um jovem rapaz que me encarava um tanto aturdido.

Um mês depois. Em julho de 1911 a data da viagem inaugural do Titanic fora marcada e meu lugar na primeira classe estava garantido, mas a viagem fora adiada de março para dia 10 de abril.

Na nova data eu estava no porto de Southempton, aguardando o embarque da segunda e da terceira classe enquanto tomava uma xícara de chá.

Estava feliz e orgulhosa, em pouco tempo eu deixaria de ser uma senhorita e me tornaria uma mulher casada.

- Ainda há tempo – ergui meu olhar e me deparei com aquela jovem, que me parecia ainda mais viçosa.

Fechei meus olhos e murmurei uma pequena prece. A imagem do campo e do bebe sendo ninado veio à minha mente e eu me tranquilizei. Quando abri os olhos não havia mais ninguém diante de mim, mas em minha mesa, ocupando o lugar de minha xícara havia uma passagem de navio, borrada, quase se desfazendo. Estava molhada e quando a ergui diante de meus olhos gotas pingaram na mesa.

Apenas o novo do navio estava legível: Naronic.

Senti um calafrio, amassando o papel e o jogando distante, saindo do café imediatamente, obrigando meus empregados a me seguirem carregando minha imensa bagagem, onde todo meu enxoval de casamento estava.

Mamãe e papai não estavam lá, haviam embarcado semanas antes e me aguardavam em Nova York, eu havia ficado porque precisava ajustar algumas medidas do vestido, mamãe e papai haviam partido porque precisavam organizar a festa de casamento.

Era meio dia em ponto quando O Titanic soltou suas amarras, partindo do porto. Eu me debrucei sobre a amurada, me meios aos passageiros da primeira e segunda classe e acenei, sorridente, para ninguém, ou melhor, para mim mesma, para a menina que deixava para trás, para Rosalie Drumont.

Não esperava a resposta de ninguém, mas quando me dei conta meus olhos estavam fixos em um única pessoa na multidão: aquela jovem desconhecida acenava e agora sua pele tinha um estranho tom azulado, como de alguém que morrera na água... ou no gelo.

Uma sensação terrível e nauseante me tomou e eu me afastei da amurada, virando-me e correndo desesperada, sem saber para onde.

- Sente-se bem? – alguém me segurou e eu ergui meu olhar para o homem que me amparava, mas assim que meus olhos tocaram seu rosto minha visão escureceu. Seu tom de pele era o mesmo daquela garota.

Passei aquela tarde toda trancada em minha cabine e evitava ao máximo sair. Todos julgavam que eu estava dormindo, mas isso era algo que eu não ousava fazer.

A última escala em Queenstown ocorreu na tarde de 11 de abril. Eu não havia comido nada naquela manhã e meu almoço se resumiu a uma xícara de chá. Eu estava morrendo? Algo dentro de minha mente repetia isso.

“Não!” – gritei contra voz em minha mente e na manhã seguinte estava no belo salão da primeira classe, degustando meu café com uma fome que nunca imaginei sentir.

Participei do baile naquela noite, onde reencontrei o jovem de olhar assustado daquele distante 31 de março. Eu não me recordava seu nome.

Era madrugada de 15 de abril, eu já me sentia muito mais à vontade naquele navio, a jovem desconhecida não aparecera mais. Nada mais acontecera. Eu sentia uma imensa paz dentro de mim enquanto caminhava pela proa, vendo algumas pessoas aproveitarem o frio da noite. O frio nunca me parecera tão confortável.

- Aprecia seu novo lar? – uma voz atrás de mim perguntou e então o frio noturno pareceu se instalar dentro de mim. Não me virei, sabia a quem pertencia aquela voz, mas não havia entendido sua pergunta - a jovem se aproximou e tocou em meu ombro, como sempre fazia, mas dessa vez algo diferente aconteceu.

Em minha mente a imagem do campo, da cadeira de balanço agora era visto por outro ângulo. Havia dois homens ao lado da mulher e ao contrário do que imaginava, ela não era eu e sim a jovem.

Em seguida a cena de um grande navio, o nome Naronic encrustado em seu casco. A jovem embarcava e acenava para Robert que segurava seu bebê. Mamãe estava a seu lado.

- Eles mataram meu bebê – a voz da jovem encheu minha mente, cheia de dor e ódio – Robert queria apenas meu dinheiro, mas agora eu vou lhes tirar algo que nenhum dinheiro comprara! Eles serão condenados por milhares de mortes!

Senti meu corpo ser arremessado para trás, contra a amurada do navio, sentindo um dor aguda em minhas costelas.

Um novo choque e meu corpo pareceu flutuar por alguns segundos, para chocar-se então contra a água fria.

- Senhorita Rosalie! – ouvi chamarem meu nome, mas meu corpo não conseguia responder, eu não conseguia me mexer, mas vi quando as pessoas que estavam por ali se inclinaram – Chamem socorro!

Senti vontade de lhes dizer que seria algo inútil, que nada adiantaria pedir socorro. Todos seríamos vítimas de ambições?

Alguém jogou uma boia ao meu lado, alguém colocou um holofote sobre mim.

- Por sua culpa – ao me lado, na água, aquela jovem acariciava meu rosto, colocando então a mão sobre meu peito, afundando lentamente meu corpo.

Os gritos tornaram-se sons abafados, distorcidos, bem como minha visão tornou-se turva.

Num último vislumbre embaixo da água, eu vi uma montanha branca-azulada se erguer, percebi que o navio ia de encontro a ela, empurrado por setenta e quatro pares de mãos, exatamente o número de passageiros do Naronic.

Com o choque, uma grande onda se formou, lançando-me mais para o fundo e só então me dei conta de que a jovem não estava mais ao meu lado.

Afundando, abaixo do navio, abaixo do casco que eu com tanto orgulho vira construir, imaginado que ele me guiaria a um maravilhoso futuro, eu me perguntava a que preço o Titanic havia sido construído, que almas Bruce Ismay e James Morgan, junto com seus sócios, não haviam ceifado para tonar realidade suas ambições? Quantos não haviam condenado?

Eu, Rosalie, era a primeira vítima do proeminente naufrágio, não só daquele navio, mas de milhares de sonhos, milhares de almas, que ficariam aguardando até poderem se vingar dos verdadeiros culpados.

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